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domingo, 15 de agosto de 2021

TERRA SEM DONO


Desde o último fim de semana, a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP) tem sido bombardeada diuturnamente nas redes sociais por jogar luz em um debate que inflama a militância de esquerda e seus seguidores da imprensa: quem mantém a chamada Cracolândia ativa e como sua crescente expansão inviabilizou a vida de bairros inteiros no coração da maior metrópole da América Latina.

O comentário que deu origem à confusão foi feito pela deputada em sua conta no Twitter. “Estou propondo uma reflexão!”, escreveu. “Há anos, todos reclamam da Cracolândia, mas ninguém tem coragem de olhar para as ações que findam por colaborar para que aquela região siga assim. Alimentar no vício só estimula o ciclo vicioso!” Ela questionava a ação do padre Julio Lancellotti, historicamente idolatrado por ONGs de direitos humanos e amigo de políticos como o líder do movimento dos sem-teto, Guilherme Boulos, e o ex-prefeito Fernando Haddad (PT). Lancellotti foi entusiasta de primeira hora do programa Braços Abertos, quando o petista administrou a cidade, que pagava aos usuários para que varressem as calçadas — com o tempo, os traficantes seguiram o caminho do dinheiro e o auxílio foi apelidado de “bolsa crack”.

Empurrando um carrinho de supermercado com marmitas e mantimentos, Lancellotti e seus auxiliares foram barrados no sábado pela Polícia Militar nas cercanias da Cracolândia. O motivo: por questões de segurança, os policiais precisavam bloquear o trânsito e a passagem de pedestres — algo frequente quando ocorrem brigas, depredações, agitação excessiva dos dependentes químicos nas ruas ou disputa entre traficantes.

Padre Julio Lancellotti | Foto: Fernando de Moraes/UOL

O padre imediatamente recorreu à imprensa para “denunciar” que a PM impediu a caridade das pastorais da Igreja. Como tradicionalmente ocorre, a reação foi um rastilho de pólvora. Janaina Paschoal foi atacada por políticos de esquerda, jornalistas e taxada de “higienista” e “anticristã”. O fato é que a deputada tocou num daqueles assuntos sobre os quais só um ponto de vista é considerado legítimo pela militância, e apontar o cenário de degradação latente é proibido. Como o Estado brasileiro impede a internação compulsória até mesmo de quem não consegue mais sair daquele labirinto por conta própria, criou-se uma área de exclusão na qual não há aplicação da lei e o banditismo impera.

É exatamente isso o que hoje ocorre na Cracolândia central da cidade — existem também as periféricas. Segundo informações da Polícia Civil de São Paulo, a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) movimenta R$ 200 milhões por ano com pontos de tráfico nas esquinas da Luz, Campos Elíseos, Terminal Princesa Isabel, Bom Retiro e vizinhança. No chamado “fluxo”, são montadas tendas para a livre venda de drogas — em alguns casos, são aceitos celulares, relógios e outros objetos roubados. As cargas de crack, cocaína, maconha e loló são armazenadas em quartos dos hotéis-cortiços da região. Foi num deles, por exemplo, na Rua Helvétia, que os policiais encontraram o estoque de Lorraine Bauer Romeiro, de 19 anos, uma das principais traficantes da área, apelidada de “gatinha da Cracolândia”. Ela chegava a faturar até R$ 6 mil por dia.

Segundo um estudo da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad), solicitado pela Secretaria de Desenvolvimento do Estado, 80% dos dependentes preferem frequentar a Cracolândia nos arredores da Estação da Luz. As duas principais razões apontadas foram a disponibilidade de drogas e a segurança para o uso.

 Na última terça-feira, 10, a reportagem de Oeste acompanhou de perto a rotina da região.

Fratura exposta

Milhares de pessoas aglomeradas embaixo de barracas improvisadas ou nas calçadas consumindo drogas em meio a restos de comida, fezes e urina. Desorientados, outros vagam pelas ruas com a cabeça baixa, como se procurassem por algo no chão. Parecem cadáveres em decomposição. Há lixo por toda parte, e o cheiro é repugnante. A distância, alguns policiais fazem a patrulha, para tentar evitar crimes, que ocorrem com frequência no local. Parece um filme de terror. É o principal quadrante da Cracolândia, fincada no centro de São Paulo.

Essa também é a realidade dos moradores e comerciantes da região. Insegurança e medo fazem parte do dia a dia deles. Rodrigo Rocha, de 41 anos, promotor de eventos, mora num dos oito edifícios do Complexo Júlio Prestes, a poucos metros da estação que leva o nome do ex-presidente paulista. O empreendimento residencial fica no bairro Campos Elíseos, entre as vias Helvétia, Dino Bueno, Barão de Piracicaba, Cleveland e Duque de Caxias. “Aqui é o coração do fluxo”, disse Rodrigo, ao se referir ao intenso movimento de dependentes químicos, que andam em manada. Ele e sua família evitam sair de casa. “Estamos suscetíveis ao inesperado. Certa vez, uma mulher em busca de drogas e completamente fora de si puxou o cabelo da minha esposa”, relatou. “Até para levar meu filho à escola é difícil.”

As queixas são as mesmas do administrador Antônio Santos, de 54 anos. Vizinho de Rodrigo, ele acrescenta que os moradores sofrem com as dificuldades para dormir. “Todos os dias, acordo às 5h30 com um homem gritando ‘bom dia’, Cracolândia’”, contou. “Descansar se tornou algo quase impossível. E o poder público não faz quase nada. Se pudesse, iria embora, como vários outros querem.”

Há até registros de invasão no local, segundo Sérgio Sant’Ana, de 37 anos. Residente em outro bloco do complexo, ele conta que os dependentes químicos encontram formas de escalar os altos muros do condomínio, apesar da patrulha da Guarda Civil Metropolitana (GCM). “Tivemos de tirá-los à força, com crianças olhando”, lembrou.

De acordo com Sant’Ana, há a falsa impressão de que há apenas vítimas na Cracolândia. “A realidade, no entanto, é diferente”, afirmou. “Há pessoas de vários tipos aqui. Existe um esquema organizado para além do tráfico de drogas, envolvendo até ONGs.” Voluntários de ONGs, por exemplo, usam os dependentes para se manifestar contra os moradores das adjacências ou chamar a atenção da mídia engajada, segundo Sant’Ana. Entre outros exemplos, ele citou a pressão da ONG Craco Resiste para que a GCM pare de atuar como polícia no local por suposta violência excessiva dos agentes contra os viciados.

Ausência do Estado

A falta de coordenação e de políticas públicas efetivas na tentativa de eliminar os gargalos da Cracolândia agravam o problema. Em 2017, o então prefeito, João Doria (PSDB), sucessor de Haddad, iniciou uma operação com 900 policiais, com a promessa de “pôr fim à Cracolândia”. Contudo, os dependentes químicos migraram para outros locais, como a Praça Princesa Isabel, a poucos metros da Estação Júlio Prestes.

Realizado em 2018, um levantamento do Ministério Público do Estado de São Paulo informou que a ação de Doria pulverizou a Cracolândia para outros seis bairros de São Paulo, além dos Campos Elíseos e da Luz: Baixada do Glicério, Santa Cecília, Sé e Santa Ifigênia (no centro); Cidade Tiradentes (zona leste); e Campo Belo (zona sul). Em escala nacional, 85% das cidades brasileiras têm problemas relacionados ao uso de crack, de acordo com estudo da Confederação Nacional dos Municípios, publicado em junho deste ano.

Para o sociólogo Rogério Baptistini, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, a solução para os problemas da Cracolândia não é de curto prazo. Segundo ele, a região precisa de um conjunto de medidas: 1) inteligência policial para combater o tráfico; 2) assistência médica e social para os usuários; 3) união das esferas municipal, estadual e federal, para que se criem situações de acolhimento e reinserção social.

“Exige-se coordenação dessas políticas públicas e o envolvimento de múltiplos atores da sociedade civil. O problema da Cracolândia transcende o mero consumo de drogas, pois abarca agentes que lucram em um grande negócio”, observou Baptistini. “No âmbito federal, o enfrentamento tem de ser às grandes organizações criminosas, responsáveis por introduzir a droga no Brasil. A batalha é longa.”

O psiquiatra Ítalo Marsili segue a mesma linha. Ele acrescenta ser necessário para o Brasil um projeto de Estado voltado à região, e não de governo. Marsili lista possíveis soluções, as quais têm de ser discutidas com a sociedade. A ajuda financeira às pessoas, por exemplo, é bem-vinda, desde que no momento correto do processo de enfrentamento dos desafios na região. “Uma parte da sociedade enxerga esse benefício como um meio de estimular o consumo de mais drogas”, observou.

A internação compulsória seria outra medida a ser debatida pelas autoridades. “Vejo que é necessário haver, no mínimo, um pouco de compulsoriedade nessa questão. Não dá para apostar na liberdade de escolha de um sujeito que está no vício”, afirmou Marsili, ao mencionar que o Estado teria de se preparar para receber pacientes enquadrados nessas condições, visto que o Brasil tem poucos leitos na especialidade, em razão da política de desmonte de hospícios. “O grande paradoxo é que, embora a compulsoriedade viole a liberdade da pessoa, ela tenta devolver ao sujeito o pleno controle de si. Cabe à sociedade e ao poder público debater isso.”

A preocupação social, cristã e virtuosa com os direitos dos viciados não é, na verdade, uma virtude — na vida real, acaba sendo exatamente o contrário. Essa postura, em termos práticos, significa manter viva, para sempre, a Cracolândia e todos os seus horrores. É isso, então, o que se quer? Trata-se de um incentivo aberto a um tipo de vida que não pode ser desejável para ninguém — uma combinação desumana de miséria, doença, sofrimento, crime, violência, opressão, a ditadura da lei do mais forte e todo o elenco de desgraças que vem junto com a degradação absoluta de uma existência sem nenhuma esperança. É o oposto da dignidade. É o contrário da cidadania.

Qual é a virtude de incentivar uma tragédia pública como essa? O certo, exatamente ao contrário do que se faz, é trabalhar cada vez mais por uma cidade sem Cracolândia — e com cada vez menos moradores de rua, viciados que mandam no espaço público, mendigos profissionais, predadores dos mais fracos, alcoólatras, vadios, crianças abandonadas e exploradores do tráfico. Defender “os direitos da Cracolândia” e de suas extensões pela cidade afora é um projeto de manutenção, a céu aberto e à vista da população, de tudo o que existe de mais degradante na sociedade humana. É forçar a sociedade a deixar intacto, no coração da maior cidade do Brasil, um pedaço vivo do inferno. Não tem nada a ver com “higiene”, como diz o Partido Pró-Cracolândia. Tem tudo a ver com consciência social.

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Fonte: Revista Oeste


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